Arquiteturas Híbridas OLTP+OLAP: Integrando Postgres com Data Lakes
Se você já trabalhou com sistemas que processam transações em tempo real enquanto rodam análises complexas sobre volumes grandes de dados históricos, conhece a solução clássica: separar os dois mundos. Um banco transacional (Postgres, MySQL) para OLTP e um data warehouse (Snowflake, BigQuery) para OLAP. O problema? Manter esses sistemas sincronizados significa pipelines complexos, latência de dados e infraestrutura cara.
Arquiteturas híbridas recentes prometem um meio-termo: manter seu banco transacional como fonte primária, mas dar acesso direto aos dados em formatos otimizados para análise, como Apache Iceberg. A promessa é tentadora—queries analíticas sem sobrecarregar seu banco de produção, sem migração completa para um data warehouse, e com dados mais frescos do que ETLs tradicionais permitiriam.
Como isso funciona na prática? E quais são os trade-offs reais ao tentar unir esses dois mundos?
O Gap Entre Transações e Análises
Sistemas OLTP e OLAP são otimizados para workloads completamente diferentes. Postgres é excelente para milhares de pequenas transações concorrentes, com garantias ACID completas e índices que aceleram buscas pontuais. Peça para ele rodar uma agregação sobre bilhões de linhas distribuídas em múltiplas tabelas, e você vai começar a ver problemas de performance.
Data warehouses modernos resolvem isso com arquiteturas colunares, compressão agressiva e processamento paralelo massivo. O custo? Você precisa copiar seus dados para lá, geralmente com horas de atraso, e pagar por mais uma camada de infraestrutura.
Apache Iceberg entrou nesse cenário como um formato de tabela open-source que traz algumas características de data warehouses para data lakes. Ele oferece schema evolution, particionamento eficiente, time travel, e o mais importante: uma camada de metadados que permite queries eficientes sem precisar reescrever dados. É storage-agnostic (funciona em S3, HDFS, Azure Blob) e tem suporte em engines como Spark, Trino e Flink.
Podemos usar Iceberg como camada analítica enquanto mantemos Postgres como banco transacional, sem duplicar todo o stack de infraestrutura?
Padrões Arquiteturais para Integração
Existem algumas abordagens estabelecidas para conectar Postgres a data lakes baseados em Iceberg. Cada uma traz diferentes trade-offs de latência, complexidade e garantias de consistência.
Change Data Capture com Debezium
O padrão mais robusto para sincronização contínua é capturar mudanças do Postgres em tempo real e materializá-las como tabelas Iceberg. Debezium monitora o Write-Ahead Log (WAL) do Postgres e publica eventos de mudança (inserts, updates, deletes) em Kafka. Um job Spark Structured Streaming ou Flink consome esses eventos e aplica as mudanças em tabelas Iceberg.
Esse padrão resolve alguns problemas críticos: você não sobrecarrega o banco de produção com queries analíticas, tem controle granular sobre como particionar dados no lake, e mantém um histórico completo de mudanças (útil para auditorias e time travel). A latência típica fica na ordem de segundos a minutos, dependendo do tamanho dos batches de escrita no Iceberg.
O trade-off é complexidade operacional. Você precisa gerenciar Kafka, garantir que o Debezium capture todas as mudanças sem perder eventos, e lidar com transformações entre o modelo relacional do Postgres e o formato parquet do Iceberg. Schema changes no Postgres precisam ser coordenados com a evolução do schema no Iceberg.
Postgres como Catalog Backend
Uma integração mais sutil usa Postgres como backend do metastore do Iceberg. O Iceberg JDBC catalog permite armazenar metadados de tabelas (schema, partições, snapshots) em qualquer banco relacional. Você configura Postgres como esse backend, e ferramentas que leem Iceberg (Spark, Trino) consultam esse metastore para descobrir onde os dados estão no storage object.
Essa abordagem não resolve o problema de mover dados transacionais para o lake, mas centraliza metadados. Se você já está executando queries em tabelas Iceberg armazenadas em S3, ter o catalog no Postgres pode simplificar a arquitetura. O Postgres garante transações ACID no catalog, o que é importante quando múltiplas queries estão lendo e escrevendo snapshots de tabelas Iceberg simultaneamente.
A limitação? Você ainda precisa de algum processo para popular os dados no lake. O catalog apenas registra onde eles estão, não os move para lá.
Foreign Data Wrappers: O Caminho Experimental
Foreign Data Wrappers (FDWs) permitem que Postgres execute queries contra dados externos como se fossem tabelas locais. A ideia seria criar um FDW que lê tabelas Iceberg diretamente do storage object, permitindo JOINs entre tabelas transacionais no Postgres e dados analíticos no lake dentro da mesma query.
Esse padrão enfrenta limitações sérias. FDWs adicionam latência significativa porque cada acesso precisa atravessar múltiplas camadas (Postgres query planner → FDW → S3 → parsing de parquet). O planner do Postgres não entende estatísticas sobre dados Iceberg, então você perde otimizações de predicate pushdown que tornariam queries eficientes. E crucialmente: Postgres não foi projetado para processar gigabytes de dados em queries analíticas, mesmo que esses dados venham de fora.
A documentação oficial do Apache Iceberg não menciona integrações diretas via FDW, e projetos da comunidade nessa direção tendem a ser experimentais. Ferramentas que prometem essa integração precisam resolver problemas difíceis de performance e compatibilidade que ainda não têm soluções estabelecidas no ecossistema.
Trade-offs Arquiteturais na Prática
Decidir entre uma arquitetura híbrida e a separação tradicional OLTP/OLAP depende de alguns fatores críticos.
Latência de dados aceitável: Se você precisa de analytics em tempo real (segundos), CDC com Debezium pode funcionar, mas adiciona complexidade. Alguns minutos de atraso? Microbatches periódicos podem ser mais simples. Se horas são OK, um ETL noturno tradicional pode ser mais robusto.
Volume e padrão de acesso: Postgres consegue lidar com workloads analíticos em dezenas ou centenas de gigabytes se você tiver hardware adequado e queries bem otimizadas. Quando você passa para terabytes ou petabytes, ou quando queries precisam fazer full table scans frequentes, a economia de simplesmente usar um sistema OLAP dedicado começa a fazer mais sentido.
Complexidade operacional: Cada componente adicional na arquitetura (Kafka, Spark jobs, monitoring de CDC) é algo que pode quebrar em produção. Arquiteturas híbridas reduzem algumas complexidades (menos sistemas para sincronizar), mas introduzem outras (garantir consistência entre camadas, debugging de issues cross-system). Sua equipe tem expertise e capacidade para operar essa arquitetura, ou você está apenas adicionando pontos de falha?
Custo real: Serviços gerenciados de data warehouse cobram principalmente por dados processados e armazenados. Se você está rodando analytics em volumes moderados, os custos de operar Kafka + workers Spark podem facilmente ultrapassar o custo de simplesmente usar BigQuery ou Snowflake. Arquiteturas híbridas fazem mais sentido econômico quando você tem volumes muito grandes e pode otimizar custos de compute com reservas ou spot instances.
Um ponto que raramente é discutido: consistência de dados em arquiteturas híbridas. Quando você faz CDC de Postgres para Iceberg, existe uma janela onde mudanças ainda não foram aplicadas no lake. Queries analíticas podem ver versões desatualizadas dos dados. Isso é aceitável para muitos casos de uso (relatórios, dashboards), mas problemático para aplicações que precisam de consistência forte entre visões transacionais e analíticas.
O Futuro das Integrações
As linhas entre sistemas OLTP e OLAP estão ficando mais borradas. Projetos como DuckDB mostram que você pode ter engines analíticas extremamente eficientes rodando diretamente sobre formatos de data lake. Postgres está ganhando mais capacidades analíticas com extensões como pg_analytics e melhorias no parallel query execution.
Ferramentas que prometem integração mais direta entre Postgres e Iceberg estão surgindo, mas ainda são experimentais. A realidade é que não existe mágica: você vai ter que escolher entre latência, consistência, performance e complexidade operacional. Arquiteturas híbridas funcionam melhor quando você aceita esses trade-offs conscientemente, ao invés de esperar que uma ferramenta resolva todos os problemas de uma vez.
Formatos como Iceberg estão reduzindo a barreira técnica para ter data lakes com capacidades próximas de data warehouses. Se sua organização já tem investimento significativo em Postgres e quer adicionar capacidades analíticas sem migração completa, os padrões arquiteturais existem. A questão não é mais “é possível?”, mas “vale a pena para o meu caso de uso?”.
A resposta depende menos de tecnologia e mais de entender honestamente seus requisitos de latência, volume, expertise da equipe e budget. Arquiteturas híbridas não são uma bala de prata, mas para casos de uso específicos, podem ser o ponto ideal entre simplicidade e capacidade analítica.